[DICIONÁRIO AMOROSO] Água - Moutinho, Marcelo

By Unknown - 23:04

Boa noite, leitores. Primeiro dia de "Dicionário Amoroso da Língua Portuguesa"! Para saber mais sobre o projeto, clique aqui!

Primeira palavra: ÁGUA, escrito por Marcelo Moutinho.




"Ele entrou no banheiro completamente nu, num silêncio áspero. Apenas a toalha vermelha pesava sobre os ombros, dando algum colorido às costas envergadas. Conduzi-o até o boxe, procurando firmar a lenta caminhada em passos estáveis. Ampará-lo.
Não havia espaço para nós dois. Fiquei do lado de fora; ele, no de dentro. Foi preciso deixar a cortina aberta, mas fiz questão de fechar a porta do banheiro, embora não houvesse mais ninguém no apartamento.

Os azulejos do banheiro suavam, ele mal me olhava. Mantinha a cabeça inclinada para baixo, a nuca parecendo maior, e eu tentando reverberar seu constrangimento em palavras singelas: tá bom assim? viu a confusão de ontem em Laranjeiras? o trânsito tá um nó. E seu Botafogo? a gente pode começar?

Girei os registros para temperar a água quente, ele conservando a mudez. Em seguida, molhei a toalha e pedi que se virasse.

Ele plantou as mãos - imóveis - sobre a parede, como se estivesse sob séria ameaça, como se eu lhe apontasse um revólver, uma faca, algo assim. A cortina, inquieta, tocou meu rosto. Insistia em fechar, ainda que eu a arrastasse cada vez que se soltava e corria no trilho. Insistia em fechar.

Guiada por mim, a toalha passeou: cabeça, pescoço, tronco, braços, pernas, pé. A toalha molhada dançava pelo corpo, sugava o suor e a sujeita, acarinhava.

E ele permanecia imóvel, embora as mãos não pudessem deter o tremelique. Não era por causa do frio, e nós dois sabíamos. Eu esfregando a toalha, ele com os olhos cerrados num breu misterioso. Talvez, no fundo de si, lembrasse: "Um dia, há muito tempo, também dei banho neste menino."

Girei novamente os registros, troquei a toalha por outra, seca. Pedi que deixasse o boxe com cuidado para não escorregar e pisasse no tapete. Escorei-o com uma das mãos. Enquanto enxugava, ouvi-o dizer, bem baixinho, quase num sussurro: obrigado. E tive a impressão de que não há como sair limpo de um banho desses."

[...]

No fim de cada texto eu vou dar minha opinião bem básica sobre eles, ok? É mais falar se gostei ou não, o que eu achei :)

Bem, quando eu comecei a ler esse livro, eu decidi que não ia pular nada. Ia ler todos os textos, com atenção e calma. Esse foi o primeiro e me encheu de emoção e peso. Achei maravilhoso como o autor conseguiu capturar todo o sentimento em volta de algo tão simples (ou considerado simples) como um filho dando banho em seu pai mais velho. Demonstrou completamente como não é só um banho. Eu ainda estou movida pelo texto. Enquanto o copiava aqui, dava suspiros, imaginando a cena, assentindo conforme eu entendia o sentimento que o filho sentia emanar do pai.

Eu amei esse texto.

Boa noite!

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