[DICIONÁRIO AMOROSO (+16)] Buceta - Molica, Fernando

By Unknown - 11:01

Olá, leitores!

Com sorte, tive um tempinho extra hoje de manhã para usar o computador da faculdade e postar a palavra de hoje! Como eu tinha avisado no post anterior do projeto, não vou ter pudor, nem ficar censurando. Aqui é na íntegra. Esse texto é mais longo, tem palavrão e acho que recomendo aí para uns +16, mas hoje em dia criança de 10 já sabe tudo né? Bora, então, parar de enrolar e ir pra mais um texto incrível?

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Palavra de hoje: Buceta, escrito por Fernando Molica
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O primeiro e definitivo impacto veio em forma de palavra. Construção óbvia. Inocente e mesmo brincalhona seqüência de consoantes e vogais. B com u, c com e, t com a. Simples como caneta, mesa, lixo, banana, cama, pote, botica. Primária como um vovô viu a uva. Uma palavra engraçada: bu que lembrava bunda, que remetia ao grito dos fantasmas de desenhos animados. Apenas mais uma entre tantas palavras ouvidas assim na vila, fiapo de conversa de meninos mais velhos. Mas o que é isso? Não sabe, pirralho? Vai perguntas pra sua mãe, ela sabe. Pergunta, vai, porra: não quer ser homem, não quer crescer? O filhinho não fala tudo pra mamãe? Como é que vai crescer sem saber? Vai lá. Fui, perguntei. A resposta foi imediata e atingiu o meio da minha face esquerda: golpe, ardência, cinco dedos carimbados em vermelho. Ataque inaugural, pancada que trazia uma novidade a um rosto acostumado a carinhos. A palavra, apenas a palavra, era a responsável pela perda dessa minha virgindade; culpada também pelas lágrimas que escorriam dos olhos da minha mãe, ela que agora me abraçava, beijava, pedia desculpas, perdão. A palavra e suas consequências, sua força e seu incisivo significado - o tapa! - virariam tatuagem.

A palavra. Mais do que nunca urgia entendê-la, dissecá-la, virá-la do avesso, decifrá-la. Era preciso desvendar o porquê de sua força, de sua agressividade, de sua rejeição - e mesmo de sua insistência, de sua incansável presença. Por causa dela, por admitir, ajoelhado, sua eventual pronúncia e sua constante evocação, recebi uma dose extra de penitência, a obrigação de recitar algumas orações a mais. Era pecado falar, imaginar. Atração e repulsa: sonhava com vogais que me acolhiam e consoantes que me aprisionavam: t que, ponta-cabeça, se unia ao b. Juntos formavam uma jaula que impedia o acesso às demais letras, à união das sílabas, à palavra um dia, enfim, transubstanciada, fonte de sentido, vida e prazer.

Indecente, safada, vulgar, pornográfica. Errônea: a troca do asséptico o pelo acolhedor e metafórico u - pernas convenientemente abertas - é o detalhe que completava a perfeita identificação teórica entre palavra e objeto. Não me interessavam bocetas de dicionário, caixinhas redondas ou ovais para guardar pequenos - pequenos... - objetos. Ignorava essa boceta que não fode,  que não sua, que não geme, que não cheira, que não goza. Por essa ninguém daria um tapa, ninguém ficaria marcado. Fora seduzido pela outra, a que pulsa, atrai, acolhe, se esconde entre pêlos, engana com curvas, montes e reentrâncias, brinca com seus múltiplos e excitantes detalhes, cheios de nomes pomposos: clitóris, lábios grandes e pequenos, vestíbulo, aberturas desta e daquela, glândulas de um e de outro - a escorregadia e receptiva de Bartholin, a festeira de Skene. Felizes Caspar Bartholin e Alexander Skene, embucetados à eternidade.

Com u, claro. Letra que subverte a palavra, a retira do dicionário, a joga na vida. Traduz o pedaço de corpo introjetado, escondido; falsa ausência, órgão que se afirma pelo que não mostra, pelo que esconde: segredos adivinhados, não explicitados. Fechada (bu) e aberta (ta), feia e bonita, sugere depravação, penetração, festa, fogos de artifício. Assustador, amedrontadora, desafiadora; comedora de reputações, desmistificadora de bravatas, de faço-e-aconteço, de propagandas enganosas. Palavra agressiva, que golpeia e afasta definições infantilóides - pombinha, xereca, xibiu, bacurinha, pupuca, perereca, xereca, periquita, chapeleta, chavasca, grelo-greta-gruta, peteca-pexereca. Palavra que ri de higiênicas vaginas e vulvas, palavras que remetem a laboratórios, consultórios, cheiram a líquidos esterilizantes, materializam instrumentos de tortura e observação. Ninguém nunca as comeu nem foi por causa delas agredido. A palavra em mim gravada era a definitiva: nela que se pensa ao se falar vagina ou uma de suas falsas e limitadas aproximações. Não minta: é assim com você também.

Ao longo dos anos, me percebia atado: à palavra e, aos poucos, à própria idéia que ela representava. Desejo de aproximação, de posse; medo da fenda que me sugaria, me comeria. Acabaria cercado - na escola, no clube, na praia, na faculdade, nos bares, nas festas. Mulheres que se resumiam a um detalhe, aquele bem no centro de seus corpos, depositário de meus olhares, tributos e interrogações. A palavra enfim se fazia carne, seria palpável. Dona de minhas visões, planos, especulações e perversões que há tanto tempo obstaculizam estudos, empregos, conversas de bar. Que se danem crises, governos, políticos, políticas, assaltos, favelas, violência, revoluções. Ao caralho com tudo isso. Hoje, ainda mais hoje, dia de meus 41 anos. Não tenho mais tempo a perder com o que esconde e disfarça nossa impossibilidade de viver apenas em função do que nos une, da primeira fronteira que ultrapassamos, traves por onde escorremos em direção à vida, gol feito ao contrário. Foi ainda preso em uma delas que primeiro vi a luz, luz que só existe a partir e por causa dela, centro do meu universo, de minha órbita constante e previsível. Causa explícita ou oculta de todas as surras que levei vida afora.

Presenças que se acumulam neste quarto apertado, paredes de um bege caído, TV 14 polegadas, sofá-cama, armário padrão mogno descascado, ar-condicionado que se esforça para isolar o calor, o barulho e a fumaça que sobem da rua. É aqui que guardo, coleciono, catalogo e gozo. Imagens que ocupam memórias, DVDs, pen drives, fotos e mais fotos, livros, livros, livros, livros, quantos e quantos livros. Imagens de frente, de costas, do alto. Cabeludas, raspadas, secas, molhadas, abertas, escancaradas, solitárias, arrombadas, penetradas por paus indevidos (todos que não o meu), regadas por variações daquele mesmo líquido viscoso que de mim escorre, muitas vezes, à sua simples lembrança. Palavra que se materializa em mulheres sem rosto, braços, penas, coração e alma. Mulheres só bucetas: provocantes, disponíveis, oferecidas, agressivas, ativas, passivas, inofensivas. Felizes com meu olhar, minhas homenagens, orgulhosas de todos os meus prazeres e medos. Milhares, milhões de imagens, variações em torno da tela de Coubert, origem do mundo, reprodução pendurada na parede e que vigia todo o quarto.

Um dia, qualquer dia, falta pouco, buceta, não é fácil abandonar relações assim tão duradouras, hei de me apresentar pessoalmente. Não mais escondido, olhos furtivos e excitados que buscavam ângulos quase impossíveis, se torciam diante de um orifício cuidadosamente urdido na porta do banheiro de empregada. Agora será ao vivo, às claras, só nós dois, eu e você. Mas sem pressa, ainda temos algum tempo. Aguarde-me, com minhas angústias e esperas: dos cheiros, suores, pêlos, curvas, reentrâncias. Expectativas também das pernas, dos braços, dos seios, da bunda, do rosto, da boca, dos olhos, do sorriso, da brincadeira, do beijo, do carinho, do movimento de cabelos. Da descoberta da mulher que a justifica e lhe dá vida e sentido. Mulher que irá me expor, me revelará. Alguém com quem possa falar, de quem possa ouvir. Que mude o bege deste quarto, que dê vida ao sofá-cama.Alguém que me tire velhos medos, que me traga outros novos, que aponte caminhos, que afaste certezas, que crie dúvidas, que me acolha, que se deixe penetrar. Acho que irei sorrir, mesmo que sucumba diante de uma nova dor. Mas isso será preciso para que eu possa enfim viver e, talvez, amar.

[...]

Bom, pessoal, eu fiquei hiper fã desse texto. Acho incrível de verdade. Sinto aquela estranheza e a vontade de desviar os olhos da forma agressiva de falar e descrever, mas sei que isso tudo faz parte da intenção do escritor. E com certeza só acontece por causa da moral e do pudor que a gente sempre tem. É algo que vem intrínseco. Você cresce com isso. Não falar de sexo com seus pais, seus irmãos talvez, seus amigos só se for banal, parece coisa fechada, perigosa, assunto de canto de quarto e cama.

Vamos dar uma descontraída e deixar a palavra parar de ter tanto peso? É só uma buceta, certo? Toda mulher tem, assim como alguns homens atualmente. Então, desencana. Para de achar que é tudo muito rude e ruim. Pega o assunto, pega o texto e vai atrás do sentido. Tem muito sentido ali. Tanto que eu não consegui abraçá-lo inteiro. Vou relendo parágrafo infinito a parágrafo infinito. E espero absorver mais alguma vírgula.

Deem uma chance para algo diferente. E até mais!

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